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quinta-feira, 26 de setembro de 2013

O julgamento do mensalão

Nunca houve no Brasil julgamento capaz de gerar tanto ódio, irracionalidade e histeria coletiva.

A CPI do Galeão levou Getúlio Vargas ao suicídio.
Por Reinaldo Lobo*

Um dia, a História irá julgar o julgamento do "mensalão" e a campanha da mídia para jogar a opinião pública contra o PT e o seu governo. Nunca houve antes um julgamento político dessa proporção, exceto talvez a Inconfidência Mineira no século XVIII colonial, capaz de gerar tanto ódio, polêmica, confusão, irracionalidade e histeria coletiva.

Era para ser um julgamento exemplar, capaz de por na cadeia os "mensaleiros" e liquidar simbolicamente a impunidade no país. Tido pela Promotoria como o "maior escândalo" de corrupção política de todos os tempos, o que nunca foi verdade, o seu desenrolar meio desastroso está provocando hoje o efeito inverso. Nada aponta para uma correção da corrupção nem para uma possível reforma política saneadora.

Os historiadores terão que considerar os sinais evidentes de que foram cometidos sérios erros nesse processo. Será preciso levar em conta as opiniões de juristas insuspeitos como Ives Gandra Martins, para quem o ex-ministro José Dirceu foi condenado sem provas numa operação do Supremo Tribunal Federal  que criou um "monstro" legal, o tal "domínio do fato". Ou como Cláudio Lembo, professor de Direito, ex-vice-governador de São Paulo e militante liberal do DEM, que considera o "mensalão" um julgamento cheio de desvios crassos.

Essas observações, desta vez, não partem de simpatizantes do PT ou de amigos de José Dirceu. Gandra Martins é bastante conhecido por sua oposição aos governos Lula e Dilma, por seu anti-socialismo radical e é tido até como membro da organização católica de ultra-direita Opus Dei. Tributarista famoso por seus conhecimentos de Direito e por dar pareceres a grandes empresários e fazer a defesa de executivos, não deu a entrevista avaliando o comportamento do STF porque ama José Dirceu ou por defender  a causa do ex-ministro.

Na verdade, ele é um advogado preocupado com a possibilidade de um dos seus clientes ser acusado da mesma forma que Dirceu, sem provas de que teria participado de um ato criminoso. A invenção do STF, o tal "monstro" denominado "domínio do fato", foi elaborado há muito tempo por um único jurista no mundo, um alemão, e sequer é aplicado na própria Alemanha. Foi, digamos, um "achado" do ministro Joaquim Barbosa e do ex-Procurador Geral da República, Roberto Gurgel, para unificar todos os processo num só sob  a égide de um chefe, que teria conhecimento do fato ,mas sem provas de que dele tenha participado.

O mensalão, urdido ,segundo a acusação, por uma quadrilha, precisava ter justamente  um chefe de quadrilha. O escolhido foi José Dirceu.

A própria escolha de Dirceu como  chefe de quadrilha não foi bem estabelecida. O seu acusador , Roberto Jefferson, já demonstrou que apontou Dirceu por duas razões: poupar Lula e tentar, assim, ter um aliado para se salvar e porque acreditava, então, que Dirceu fora quem armara um flagrante na mídia sobre a corrupção nos Correios, que revelava a sua participação e do seu PTB. Depois, ficou claro que quem armou para Jefferson foi a própria mídia, com a colaboração de nada menos do que o Sr. Carlinhos Cachoeira, contraventor que seria mais tarde alvo de uma CPI que foi abafada no Congresso.

Não sejamos hipócritas: algo aconteceu envolvendo o PT e foram erros políticos grosseiros. A começar pela própria aliança com um personagem bastante conhecido como o ex-deputado Roberto Jefferson. O PT, um partido que se pretendia modernizador, ficou parecido com os outros, a chamada "vanguarda do atraso".  Correu o risco de se ver varrido da cena política. Salvou-o a performance posterior do governo Lula, sobretudo na área social e econômica.

Apesar dos erros do PT, a campanha política que se seguiu na grande mídia para tentar jogar a opinião pública e a Justiça contra ele confundiu tudo: ficou parecendo que esse partido inventou 500 e tantos anos de  corrupção no Brasil. A imagem difundida semanal e diariamente era de que tudo o que haveria de podre neste reino era obra dos petistas e o Mefistófeles por trás seria o José Dirceu.

A classe média, naturalmente contra a corrupção, foi instigada a agir para "acordar" e derrubar o governo Dilma. As jornadas de junho, iniciadas por estudantes, grupos sociais e militantes de pequenos grupúsculos de esquerda, transformaram-se em passeatas de protesto anti-corrupção por duas razões: a ameaça de um retorno da inflação e a pressão da mídia contra os bodes expiatórios Os petistas tornaram-se os judeus a serem atingidos.

O preconceito, o ódio e a campanha oposicionista da mídia comprometida correram paralelamente ao julgamento no STF, onde os pavões togados disputam a autoria melhor performance, orgulhosos de sua obra -- o maior julgamento da história, maior inclusive do que a CPI do Galeão que levou Getúlio Vargas ao suicídio em 1954.

A pressão  por uma condenação rápida, como se isso pusesse fim, afinal, à impunidade, é indevida. A pressa para ver os acusados na cadeia, uma espécie de catarse para o ódio alimentado, tem sua razão de ser. A população brasileira está cansada de escândalos. Mas acontece que  só a armação de um julgamento unificado, desde o início criticada por inúmeros juristas, inclusive agora por Gandra Martins e Lembo, tornou este julgamento tão emblemático.Também ficou claro que os juízes do STF sabiam todos que o embargos infringentes reclamados pelos réus estavam em vigor e eram constitucionais. Não só o ministro Celso de Mello sabia disso, ou os que votaram igual a ele. Os que votaram contra e até pressionaram anti-eticamente o ministro Celso de Mello, votaram, portanto, politicamente.

O luto não deve ser por não vermos os réus imediatamente na cadeia, mas pelas  chicanas judiciárias, para usar o termo do ministro Barbosa. O excesso, o exagero, a retórica jurídica e o clima emocional não ajudarão nem à Justiça nem a uma imagem histórica decente.
Os historiadores descobriram que o "mar de lama" de que acusavam Getúlio, em 1954, não só era muito exagerado como revelaram que o ex-presidente , pessoalmente, morreu tendo apenas a fazenda da família em São Borja. Será que teremos que esperar os historiadores futuros para separar o joio do trigo e recolocar a verdade sobre o mensalão?
*Reinaldo Lobo é psicanalista, doutor em Filosofia pela USP e jornalista.

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