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segunda-feira, 16 de junho de 2014

500 anos de Maquiavel

Cinco séculos de ação política baseada na fraude, na violência e na impiedade.

Por Márcia Junges
“Os termos ‘maquiavelismo’ e ‘maquiavélico’ se impuseram no imaginário político moderno europeu como sinônimos de uma ação política baseada na fraude, na violência e na impiedade”, reflete o filósofo português António Bento(*), na entrevista que concedeu, por e-mail, à IHU On-Line. E acrescenta: “acusar um determinado inimigo político de ‘maquiavelismo’ e estigmatizar publicamente os seus atos como ‘maquiavélicos’, constitui, no fundo, uma simples arma de arremesso político”. A influência política do pensador florentino, “a despeito de um desprezo e de um ódio imensos, jamais deixou de se sentir. Pelo contrário, antes ganhou mais e mais terreno, e, como de certa maneira não poderia deixar de acontecer, preferencialmente no próprio seio daqueles que se declaravam seus inimigos políticos”.
Leia a entrevista:
O que são o maquiavelismo e o hipermaquiavelismo?
Uma resposta adequada e, tanto quanto possível, exaustiva, à sua pergunta mobilizaria certamente uma biblioteca inteira, não uma biblioteca qualquer, nem sequer uma biblioteca especializada em estudos sobre Maquiavel, mas uma “biblioteca total”, digamos que à semelhança daquela “Biblioteca de Babel” concebida por Jorge Luis Borges! Tal a “reputação” e tamanhas as lendas associadas ao nome Maquiavel!
Mas talvez devamos começar por modificar ligeiramente a pergunta, de modo a obtermos outro tipo de respostas, respostas que, precisamente, digam respeito a outro tipo de perguntas: não serão antes os “médicos” que, a posteriori e analisando de perto a “doença”, agrupam sintomas até então dissociados (batizando-os, desbatizando-os e rebatizando-os), compondo um “quadro clínico” novo e original à custa de um sortilégio extraordinário e de um estranho poder de conotar signos (signos políticos, no caso de Maquiavel) que um determinado nome próprio possui e liberta.
Carl Schmitt compreendia Maquiavel como alguém mais do que apenas o autor de O Príncipe. Tendo esse horizonte em vista, que chaves de leitura devem ser tomadas em consideração a partir das outras obras desse pensador, como Os Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio?
O problema não é pacífico, nem isento de certas paixões, digamos assim, hermenêuticas. Muito antes de Carl Schmitt, outros autores, não menos importantes que o jurista alemão, insistiram no duplo aspecto do ensinamento político de Maquiavel, consoante este é deduzido de O Príncipe ou de Os Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio (ou ainda de Histórias Florentinas).
Afinal, bem vistas as coisas, não teria sido o próprio Maquiavel — de acordo com uma tradição republicana, liberal, romântica, e até marxista, de interpretação do seu pensamento — muito pouco “maquiavélico”, um daqueles instrutores de príncipes que conhecem o jogo político do Estado e que integralmente o ensinam, ao passo que o “maquiavelismo” vulgar, esse sim, ensinaria a fazer outra coisa?
Tal é já a opinião do prudente Espinosa , para quem “talvez Maquiavel quisesse mostrar quanto uma multidão livre deve ter medo de confiar a sua defesa a um só, o qual, se não for vaidoso nem julgar que pode agradar a todos, tem de temer revoltas todos os dias, sendo por isso obrigado a precaver-se e a atraiçoar a multidão em vez de governá-la”. Em idêntico sentido se pronunciou Jean-Jacques Rousseau : “Fazendo crer que dava lições aos reis, dava-as bem grandes aos povos. O Príncipe, de Maquiavel, é o livro dos republicanos”.
Quanto ao ódio que os seus contemporâneos destilaram sobre Maquiavel, apresentara-o já Trajano Boccalini , na primeira década de seiscentos, nos seguintes termos: “Os inimigos de Maquiavel consideram-no homem digno de punição porque revelou como os príncipes governam e, assim, instruiu o povo; ‘colocou dentes de cães nas ovelhas’, destruiu os mitos do poder, o prestígio da autoridade, tornou mais difícil governar, porque os governados podem saber a este respeito tanto quanto os governantes”.
De que modo Maquiavel e Hobbesproblematizam a questão da natureza humana e do absolutismo? Como tais compreensões repercutem na política ocidental?
A questão do “absolutismo”, se tomarmos este conceito no seu estrito significado histórico e político, só se põe a partir do momento em que Jean Bodin , primeiro, e Thomas Hobbes, depois, definem e formulam, cada um, evidentemente, à sua maneira, o conceito jurídico-político de “soberania”. Creio que cometeríamos um anacronismo se porventura começássemos a falar impropriamente de “soberania” e de “absolutismo” em Maquiavel.
Que um paradigma político imunitário governa hoje de maneira transversal e capilar as relações humanas globais no seu conjunto, comprova-o o fato de a modulação afetiva e o controle da intensidade do medo se terem tornado um assunto político de interesse público. Cada vez mais, a “sociedade do risco” em que nos movemos é permanentemente ameaçada pelo pânico ante toda a espécie de potenciais catástrofes (ambientais, ecológicas, epidêmicas, terroristas, políticas, econômicas, etc.) que devem ser cientificamente prevenidas.
Como observa Frédéric Neyrat : “A biopolítica contemporânea é imediatamente uma imunopolítica de tendência paranoica, que desconfia de fronteiras que se tornam cada vez mais indelimitáveis. […] É, com efeito, impossível compreender os objetivos proclamados da biopolítica sem interrogar a sua ‘outra cena’, o seu fantasma de imunização absoluta, de proteção total”.
Em que sentido as constatações políticas de Maquiavel ecoam nas concepções políticas de Nietzsche , como na grande política, na vontade de poder e na transvaloração dos valores?
Creio, sinceramente, que em absolutamente nenhum sentido. Efetivamente, não creio que se possa, e menos ainda deva, misturar o sol materialista de Florença com o nevoeiro metafísico de Bayreuth… Isto, claro, ressalvando embora toda a genuína admiração de Nietzsche por Maquiavel: “A minha recriação, a minha predileção, a minha cura de todo o platonismo foi sempre Tucídides . Tucídides e, talvez, O Príncipe, de Maquiavel, me são mais afins pela determinação incondicional de não se deixar iludir em nada e de ver a razão na realidade — não na ‘razão’, e menos ainda na ‘moral’…”, confessa o “cabeça-de-dinamite” (Ernst Jünger) em O Crepúsculo dos Ídolos.
Nesse sentido, como o “estatuto da mentira na Filosofia Política” pode ser compreendido se pensarmos a partir da perspectiva de Maquiavel e Nietzsche?
São, com certeza, perspectivas distintas as de Maquiavel e de Nietzsche em torno da “mentira”, em geral, e, sobretudo, a respeito da “mentira política”, em particular. Contudo, há que sublinhar igualmente a existência de afinidades e de semelhanças. No caso de Nietzsche estamos, por um lado, perante uma teoria artística da mentira, que faz do poder do falso uma magnificação do “mundo enquanto erro”, transformando a vontade de enganar num ideal estético superior e, por outro, diante de uma teoria pragmática da linguagem.
Num ensaio de 1873, intitulado Acerca da verdade e da mentira no sentido extramoral, Friedrich Nietzsche elabora uma teoria da verdade que está muito próxima de algumas modernas teorias pragmáticas da linguagem. Em primeiro lugar, a verdade é aí valorizada porque é útil para a comunidade, boa para a sociedade, e não porque corresponda a um efetivo conhecimento das coisas.
Em segundo lugar, a linguagem, enquanto instrumento privilegiado do conhecimento, é fundamentalmente uma estrutura de dissimulação, um mecanismo de apropriação e de captura da realidade, e não uma espécie de espelho da realidade. O ponto de partida desta concepção nietzscheana da linguagem é que a verdade não é valorizada por interesses, em primeiro lugar, científicos, ou éticos, em geral, mas por sujeitos interessados na sobrevivência e numa vida comunitária, social, estável.
Convém sublinhar que não se trata, para Nietzsche, de pôr em dúvida a vontade de verdade, embora ele nos venha lembrar que os homens, de fato, não amam, naturalmente, a verdade, e que muitas vezes, mais do que os seus erros, são os seus interesses e a sua estupidez que os separam da verdade. Com muita seriedade, Nietzsche aceita pensar este problema colocando-se, de boa fé, no próprio terreno em que o problema é posto: no terreno moral. Assim, Nietzsche procura antes pensar o que a verdade pode significar como conceito, que tipo de forças e que espécie de poderes se apropriam dela. Quanto a Maquiavel, o problema da mentira surge associado à necessidade de dissimulação/simulação intrínseca ao político e, por vezes, à estritamente necessária inobservância da palavra dada. Com efeito, no capítulo XVIII de O Príncipe, o secretário florentino observa o seguinte:

“Quão louvável seja num príncipe o manter a palavra dada e viver com integridade e não com astúcia, qualquer um o entende. No entanto, vê-se pela experiência do nosso tempo terem feito grandes coisas aqueles príncipes que tiveram em pouca conta a palavra dada e que souberam, com a astúcia, dar a volta aos cérebros dos homens; e no fim superaram aqueles que se fundaram na sinceridade. Não pode, portanto, um senhor prudente, nem deve, observar a palavra dada quando tal observância se volta contra ele e se extinguiram os motivos que o fizeram prometer. E, se os homens fossem todos bons, este preceito não seria bom. Mas, porque eles são ruins e não a observariam para contigo, tu também não a tens de observar para com eles, nem faltarão jamais a um príncipe motivos legítimos para mascarar a inobservância”.

Finalmente, há que referir, ainda que necessariamente de forma muito breve e alusiva, às reflexões de Hannah Arendt , uma admiradora confessa do pensamento de Maquiavel, sobre a mentira política moderna. Não foi há muito tempo que a autora de TruthandPolitics (1967) chamou a nossa atenção para o carácter ativo e afirmativo da mentira, para o fato de “as mentiras, desde que utilizadas como substitutos de meios mais violentos, poderem ser consideradas como instrumentos relativamente inofensivos no arsenal da ação política”.

Que a política e a verdade sempre estiveram em más relações e que a boa fé jamais foi incluída na classe das virtudes políticas, é algo bem conhecido e mesmo um lugar comum. Com efeito, o segredo, os arcanaimperii, o engano, a falsificação deliberada e a mentira descarada são usados como meios legítimos para alcançar fins políticos desde os primórdios da história documentada. Não por acaso, Hannah Arendt lembra-o constantemente: “As mentiras foram sempre consideradas necessárias e justificáveis, não apenas à profissão do político e do demagogo, mas também à do homem de Estado.
Por que será assim? O que é que isto representa, por um lado, para a natureza e a dignidade da esfera política, e, por outro, para a natureza e a dignidade do domínio da verdade e da boa-fé?”
Um dos pontos interessantes da argumentação de Hannah Arendt neste ensaio prende-se com o reconhecimento da existência de uma transformação ou mutação na história da mentira. Uma mutação simultaneamente na história do conceito de mentira e na história da própria prática do mentir. Segundo Arendt, a mentira teria modernamente atingido o seu limite absoluto, tornando-se agora “completa e definitiva”.
Ao contrário de Oscar Wilde , que no seu O Declínio da Mentira diagnostica uma agonia da mentira e lamenta que os políticos, os advogados, e mesmo os jornalistas, saibam cada vez menos mentir e cultivem cada vez menos a mentira, Arendt considera preocupante o crescimento hiperbólico da mentira na arena política moderna: “A possibilidade da mentira completa e definitiva, ainda desconhecida nas épocas anteriores, é o perigo que decorre da moderna manipulação dos fatos.

Mesmo no mundo livre, onde o governo não monopolizou o poder de decidir e de dizer o que é ou não é da esfera da fatualidade, gigantescas organizações de interesses generalizaram uma espécie de mentalidade de raison d’État, outrora confinada ao domínio dos negócios estrangeiros, e, nos seus piores excessos, às situações de perigo iminente e atual”.

Neste ensaio, Arendt esboça a problemática da efetividade e da performatividade de uma mentira cuja estrutura e acontecimento estariam ligados, de maneira essencial, ao conceito de “ação”, e, mais precisamente, ao conceito de “ação política”. É este um motivo presente logo nas primeiras páginas de Lying in Politics.

Foi apenas no século XIX que se proferiu de modo veemente o vaticínio da morte de Deus, através do último homem que Nietzsche assenta na praça do mercado. Contudo, as bases desse deicídio já vinham sendo construídas antes do filósofo alemão. Nesse sentido, é correto compreender Maquiavel como um dos pilares não só do laicismo, mas de um fenômeno ainda mais profundo como o niilismo?
Tem-se abusado em demasia dos conceitos de “laicismo”, “secularização”, “niilismo”… Não posso agora entrar na sua discussão, mas recordo que num um texto escrito nos anos 40 do século XX, intitulado O fim do maquiavelismo, Jacques Maritain , reatualizando sob a forma de um tolerante humanismo cristão os velhos argumentos dos autores católicos da Contrarreforma contra Maquiavel, insiste na “perversidade” do secretário florentino ao sublinhar que ele ensinou os homens não apenas a fazer o mal, mas a fazê-lo de consciência tranquila:
“O que era simples fato, com toda a fraqueza e inconsistência que, mesmo no mal, é própria das coisas acidentais e contingentes, depois de Maquiavel ficou sendo direito, com toda a firmeza e solidez próprias das coisas necessárias. Esta é a perversão maquiavélica da política, que emerge do fato da “tomada de consciência” maquiavélica do comportamento político médio da humanidade. A responsabilidade histórica de Maquiavel é a de ter aceitado, reconhecido e adotado como regra o fato da imoralidade política e de ter declarado que a boa política, a política conforme sua natureza e seus autênticos fins, é, por essência, uma política não moral”.
Mais próximo de nós no tempo, um autor da envergadura de Leo Strauss chama a atenção para o caráter violentamente anticristão da doutrina de Maquiavel, para a sua moralidade diabólica e sem escrúpulos. Maquiavel teria sido um ateu consciente empenhado em subverter e destruir o cristianismo. Maquiavel teria sido o primeiro filósofo político moderno, alguém que, tendo iniciado a revolução contra a tradição do pensamento político ocidental, iniciaria também o declínio da própria civilização ocidental. Tudo o que agora posso laconicamente dizer — sem, contudo, justificar a minha posição — é que esta não é, de todo, a minha opinião.
O que "O Príncipe” moderno deveria aprender com a obra do pensador florentino?
Para que possamos responder a esta pergunta é preciso que saibamos exatamente a que ponto o “Estado de direito” hodierno se afastou realmente de Maquiavel. É necessário que avaliemos primeiro, e escrupulosamente, o que nos custa esse afastamento, o que pagamos, enfim, por ele. É necessário, por isso, que saibamos até onde, de maneira talvez insidiosa, Maquiavel se aproximou de nós e do nosso “Estado de direito”.
É, pois, necessário que o próprio “Estado de direito” apure o que há ainda de maquiaveliano naquilo que lhe permite pensar-se e definir-se contra Maquiavel. Por fim, é necessário ainda que se avalie em que medida o protesto moral do “Estado de direito” contra Maquiavel não será talvez ainda uma armadilha que o próprio Maquiavel lhe estendeu — uma armadilha de onde ele, Maquiavel, maliciosamente o espreita e observa.
Maquiavel em cinco frases. Veja o vídeo:

*António Bento é doutor em Filosofia pela Universidade da Beira Inteiror — UBI, em Covilhã, Portugal, onde é vice-diretor do curso de Ciência Política e Relações Internacionais. Aí integra como investigador o Instituto de Filosofia Prática (IFP) e o Centro de Estudos Judaicos (CEJ). É membro do editorial da revista MachiavelliandMachiavellism integrada no ProgettoHypermachiavellism (www.hypermachiavellism.net). Organizou e editou Maquiavel e o Maquiavelismo (Coimbra: Almedina, 2012) e Razão de Estado e Democracia (Coimbra: Almedina, 2012). Mais recentemente, organizou e editou (com José Rosa) RevisitingSpinoza’sTheological-PoliticalTreatise (Zürich — New York: Hildesheim, Georg OlmsVerlag, 2013).

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