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quinta-feira, 19 de junho de 2014


SILÊNCIO RUBRO
A tarde chegou
Silenciosamente
E deitou
Uma sombra rubra
Sobre a cidade
Era como se os telhados
Já bem avermelhados
Cobrissem as casas
De vergonha anoitecida
Acobreando frestas
Incendiando desejos
Para além dos limites
Das paredes
E das vontades
Enrubescidas…
Mírian Cerqueira Leite
Odorico Mendes, o herói da Eneida [*]
Admirável é “Virgílio Brasileiro”, ou tradução do poeta latino, de Manuel Odorico Mendes, 1º volume, contendo as bucólicas e as geórgicas, 2ª edição, atualizada com introdução e notas do professor Sebastião Moreira Duarte, que sob o seu olhar dirigiu esse trabalho para apresentá-lo como tese de doutorado em uma Universidade dos Estados Unidos. O livro foi editado com apoio da Fundação Sousândrade, pela Editora da Universidade Federal do Maranhão, instituição onde Sebastião se aposentou como Lente de literatura. O trabalho saíra em 1995 e me chegara às mãos tempos depois, juntamente com um livro de versos e um estudo sobre “mosaicos”, imortal criação bizantina ainda louvada na ortodoxia eslava; e “Traduções de Voltaire” (Mérope e Tancredo), também de Odorico Mendes, todos com dedicatórias fraternas. Registre-se aqui que não nos conhecíamos, apenas por conversas ao telefone; pessoalmente, há pouco tempo, numa recepção na Academia Maranhense de Letras, na posse de alguém que me foge a lembrança.
Ainda dentro dessa coincidência, o escritor Sebastião ao tomar conhecimento deste artigo que gentilmente o enviei por e-mail, falou-me dias depois que o mesmo tinha alguns erros de informações, sem mos dizer, contudo, quais eram, e muito menos eu os perguntei, porque, à moda de Pitigrilli, ainda acho que escrever sobre alguém que mereça, como é o caso do ilustre professor, é um elogio, e nunca uma gentileza, como talvez possa pensar.
O livro é aberto com um estudo de Sebastião Moreira Duarte com o título de “Nosso Virgílio Neoclássico”, no qual ele fala sobre as nuances da tradução como gênero literário, suas dificuldades e implicações, suas possíveis deformidades, mas também sua beleza, o que chega, muitas das vezes, a ser quase perfeita, não só no transplante do texto, como no aprumo do emocional. Afinal de contas, tradução não é exercício para qualquer um e nem amenidades para matar o tempo.
O Doutor Antônio Henriques Leal diz no “Pantheon Maranhense”, Tomo II (ensaios biográficos de maranhenses ilustres já falecidos) que Odorico Mendes “nasceu em São Luís, capital da província do Maranhão, na casa de seu avô materno, Manuel Correia de Faria, sita na Rua Grande, aos 24 de janeiro de 1799, vindo por seu pai, o capitão-mor Francisco Raimundo da Cunha, fazendeiro das margens do Itapicuru (sic), de Antônio Teixeira de Melo, ilustre restaurador do Maranhão do poder dos holandeses; e por sua mãe, Dona Maria Raimunda Correia de Faria, de Tomás Beckman, irmão do infeliz Manuel Beckman, ou Bequimão, como o apelidavam os coevos e naturais da capitania, e o escreveram os cronistas do seu tempo, manchando-lhe a memória, que foi em nossos dias reabilitada com muito talento e saber pelo distinto João Francisco Lisboa”. E é esse texto do editor d’ O Timom que se encontra no trabalho dirigido por Sebastião.
Nas anotações de pé de página que acompanham todo o roteiro do livro, vê-se que “nesta obra monumental Odorico Mendes não se mostrou somente consumado latinista e distinto poeta: elevou-se avantajado arqueólogo pelo trabalho de anotações repleto de vastíssima erudição (...) que manifestam, não só a sua vasta instrução e o profundo conhecimento do idioma vernáculo, mas justificam o conceito que dele formam como o escritor mais conciso entre os seus atuais contemporâneos de Portugal e do Brasil”, enfatiza Inocêncio Francisco da Silva, no seu “Dicionário Bibliográfico Português”.
Odorico Mendes quando Deputado provincial pelo Maranhão, por diversas legislaturas, foi autor da primeira lei de “reforma eleitoral” e da lei da “abolição dos morgados”, nos informa discurso proferido por Pedro Braga Filho na homenagem prestada pela Câmara dos Deputados, pelo centenário de falecimento de Odorico Mendes, no dia 17 de agosto de 1964, enfeixado no livro “Memorial de Pedro Braga Filho”, contendo discursos literários e parlamentares, cuja edição foi dirigida por mim, com introdução, seleção de textos e notas.
Há tempos, quando estagiário em Direito Penal Comparado, na Universidade de Paris-Sorbonne, li na versão francesa o livro “La Mort de Virgile”, de Hermann Broch (uma brochura editada pela Imprensa Universitária), sobre o qual, com a ajuda da memória, farei pequeno comentário, necessário para a interligação que pretendi dar ao contexto destes apontamentos.
O autor austríaco a romper deliberadamente com os padrões tradicionais do romance, neste reveste-se de reflexões moldadas de lirismo, mitos e símbolos, a estruturar o trabalho em forma de um monólogo interior, quase que uma auto-revelação, com laivos de sofrimentos análogos aos do poeta romano Virgilio, o qual sofreu intensamente em virtude de a arte, amor que se dedicou à vida inteira, tê-lo impedido de realizar-se como um ser humano e mortal. Muitos desses desejos reclamados foram vividos pelo emocional do herói troiano que também não foi contemplado com as trocas que desejava, segundo o contexto alegórico. O direito de viver para si, fora muitas vezes impedido, em virtude da obediência que cegamente devotava aos deuses. Exemplo disso é quando ouvia de Dido, a rainha cartaginesa, suas cobranças apaixonadas; tinha ele, o viajante mítico, de responder-lhe que era escravo do destino, sem nenhum direito ao seu próprio arbítrio...
No livro, Broch descreve as últimas horas do poeta camponês, a lutar desesperadamente pela vida até o instante de sua morte, enfrentando-a como se fora um Profeta, cheio de delírios que o fizeram vaticinar um século antes do nascimento de Cristo, à maneira dos versículos bíblicos de Isaías, como o descrito na IV Écogla, fragmentos líricos, vindos da Sibila de Cumas com fatídicas previsões...
A intertextualização que pretendi nestes apontamentos, entre o épico latino e o ensaio romanceado de Hermann Broch, foi para deixar como reflexão que, se restou ao autor austríaco assumir-se no final do trabalho, como alterego do poeta camponês, levado pelos sentimentos, sofrimentos e dons de vidência, faz-me acreditar, pelo enfoque clássico, legitimar-se Odorico Mendes, por seus dotes naturais e pela utopia humanística existente em Enéias, carregada de sentimentos nobres e ritos grandiosos, ser ele, o gênio maranhense, o verdadeiro herói da Eneida.
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[*] Fernando Braga, in “Toda Prosa”, Tomo III, do livro “Travessia” [Memórias de um aprendiz de poeta e outras mentiras], em fase de organização.

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