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sexta-feira, 15 de novembro de 2013

15/11/2013  |  domtotal.com

O homem da caneta

Cabe a ele avaliar, com o poder de sua caneta, as medidas para minimizar o aquecimento global.


(Foto: Ilustração de Max Velati)
Por Max Velati*

O homem acordou. Há anos fazia isso naturalmente, sem precisar do despertador. Depois do banho, escolheu um terno cinza, bem leve, feito em Londres e ao apertar o nó da gravata italiana decidiu que precisava emagrecer.

Desceu as escadas e encontrou a mesa do café já arrumada e bem sortida, com geléias importadas, sucos de frutas exóticas e um bule fumegante de café colombiano. Pediu a um dos empregados que ajustasse o ar condicionado. O dia prometia ser muito mais quente do que deveria para aquela época do ano.

Depois do café, saboreado com tempo e calma, mandou que tirassem "o carro alemão" da garagem. O motorista apareceu na porta da copa alguns minutos depois avisando com um aceno discreto que o carro já estava pronto.

O homem entrou no carro enorme e brilhante, impecavelmente aspirado e polido. O estofado de couro chiou quando ele desajeitadamente desabou no banco de trás e outra vez ele pensou que precisava de um regime.

O homem pediu ao motorista que ajustasse o ar condicionado. Dez da manhã e o calor já era "senegalesco", como diria o seu avô.

O carro percorreu as ruas entupidas de veículos, fumaça, pedestres atrasados para o trabalho e sons irritantes. O homem não viu e não ouviu nada disso. Os vidros escuros mantinham esta paisagem como um filme borrado exibido em um "drive in" distante. No interior do carro, com a música instrumental do CD escolhido pela esposa, o ar condicionado perfeitamente ajustado e o ronco suave do motor alemão, a viagem até o escritório estava bastante suportável.

A entrar no prédio ele percebeu com prazer que o ar condicionado estava perfeitamente ajustado. Notou também que funcionários zelosos haviam regado o pequeno jardim do saguão e o verde exuberante de um punhado de plantas era um pouco de alegria naquela ilha feita de mármores, vidro e aço.

No escritório a temperatura estava perfeita. Ele tirou o paletó para sentir contra a pele o frescor da camisa de puro algodão. Sobre a mesa, uma legião de secretárias havia colocado uma pilha de pastas amarelas, cada uma delas exigindo resoluções importantes. O homem podia fazer o trabalho sem pressa porque era dono do seu próprio tempo e de uma infinidade de outras coisas.

Em cada pasta amarela uma questão importante aguardava uma resposta definitiva.

Abriu a primeira pasta.

Leu o resumo preparado por seus assistentes e caberia a ele agora, justamente ele que era dono do próprio tempo e começava às onze horas da manhã a sua jornada de trabalho, opinar finalmente sobre a jornada de trabalho do que ele e seu grupo chamavam de "homem comum".

Abriu a  segunda pasta e outra decisão importante esperava a sua assinatura. O homem que ainda tinha na boca a combinação preciosa dos sabores do farto café da manhã, pago todos os dias com dinheiro alheio, deveria opinar agora sobre o preço dos alimentos.

Na terceira pasta outra questão vital aguardava o seu parecer. O homem que tinha sempre à disposição jatinhos, helicópteros e três carros com motorista deveria julgar com isenção e experiência os inúmeros problemas relativos ao transporte urbano.

Abriu a quarta pasta, pesada de análises, fotos de satélite e relatórios científicos. No papel timbrado com o resumo preparado por alguém, uma linha pontilhada esperava a sua assinatura. Caberia ao homem que tinha verdadeira obsessão pelo ajuste perfeito do ar condicionado, avaliar naquele instante, com o poder, peso e gravidade de sua caneta, todas as medidas propostas para minimizar o aquecimento global.

"Alguns legisladores querem apenas vingança contra um inimigo em particular. Outros só querem vantagens pessoais. Eles dedicam muito pouco tempo considerando qualquer questão pública. Pensam que esta negligência não causará nenhum dano. Agem como se fosse sempre a responsabilidade de um outro analisar isto ou aquilo. Quando esta noção egoísta é praticada por todos, o bem comum lentamente começa a decair".

Tucídides - Historiador (460 a.C - 396 a.C)


 

Comentários

Joselina Fernandes | 15/11/2013 10:36
Obrigada Max Velati por este texto tão real e que nos apresenta uma realidade 'vergonhosa'. Gostaria de ler mais textos nesta linha para poder divulgá-los e colocá-los nas pautas de minhas reuniões. Sair de si mesmo e ir ao encontro do outro... Esse é o Caminho.
responder comentário Responder Joselina Fernandes
Luis Henrique | 15/11/2013 07:43
Bem escrito, bem sentido, bem chocante. Gostei do tom e da apreciação sobre o desleixo de figurões com relações a diversas coisas que possam afetar o mundo, inclusive o próprio mundo deles, mais cedo ou mais tarde.É inevitável, caso a coisa continue desta forma!
responder comentário Responder Luis Henrique

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