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terça-feira, 5 de novembro de 2013

Amanhã eu faço! - Lev Chaim

A versão holandesa de uma tradição brasileira: por que fazer hoje o que pode ficar para amanhã?

Por Lev Chaim, de Amsterdã*

Esta é uma frase de uma canção holandesa da província holandesa de Brabant, “morgen” (amanhã), que ouvi no teatro. Amigos holandeses que estavam comigo não entenderam o meu riso ao ouvir esta parte. Eles, que pensavam que aquela expressão refletia um sentimento tão regional holandês, difícil de ser entendido por um estrangeiro, quiseram logo saber o por quê  do meu sorriso. Assim lhes expliquei.

Eu explico amanhã, amanhã eu explico. Vou começar a fazer ginástica, amanhã eu começo. Inicio a natação, amanhã inicio. Limpo a minha estante de livros, amanhã. E por aí afora. É claro que não precisei dizer mais nada. Eles entenderam tudo. Aquelas palavras-promessas, vamos dizer assim, não eram para ser cumpridas, mas, apenas para apaziguar as dores de consciência, pelo adiamento ininterrupto da realização de coisas que você, no caso, considerasse importantes. 

Quem já não passou por isto? Quem nunca fez uma promessa dessas? Não importa, uma vez adquirida a consciência deste pequeno truque, já estamos próximo à solução do problema que está em nossa mente, quando estivermos realmente predispostos à coisa. Assim não tem ontem, hoje e nem amanhã, mas, simplesmente, agora. Esta é a chave do problema – aqui, agora.

Escrevendo tudo isto, lembrei-me da Páscoa Judáica (Pessach), de um acontecimento curioso da Bíblia, quando Deus falou a Moisés no deserto, enquanto ele tocava o rebanho do sogro. Foi durante o maravilhoso fenômeno da sarça ardente, que apesar de estar em chamas, não se queimava. Do meio dessas chamas, Moisés ouviu as palavras de Deus que o transformaram em profeta - mensageiro divino.

A voz chamou Moisés para se aproximar, mas, antes, pediu-lhe para que ele tirasse as sandálias, pois ali, ele estava pisando em solo sagrado. No início, ele não entendeu nada: como podia uma árvore em chamas não ser destruída pelo fogo? As diversas interpretações dessa passagem me fascinam.

Uma delas, é que com as sandálias, Moisés estava vendo todos os acontecimentos apenas com olhos humanos. Aquele invólucro, as sandálias, que lhe evitava os percalços do caminho pedregoso, não o colocava em contato com o pensamento divino e nem com o sofrimento de seu povo, ainda escravo no Egito. Talvez, descalço, no chão árido do deserto, ele pudesse sentir na carne o que os judeus passavam na escravidão, num país estranho.

É claro que Moisés se preocupava com fato, mas, até então nunca agiu. O seu corpo esta ali, no deserto, em Midian, onde vivia com a família de seu sogro, mas o seu coração não deixava o Egito, sempre com o pensamento em seus compatriotas que sofriam. Dividido deste modo, ele só adiava a solução do problema. Até mesmo Moisés passou pela síndrome da frase da canção regional holandesa, amanhã eu faço.

A ordem de Deus, para que ele tirasse as sandálias porque pisava em solo sagrado, foi uma verdadeira libertação pessoal, preparando-o para a sua missão de resgate de seu próprio povo da escravidão. Com isto, Deus veio para cumprir a sua promessa: levar aquele povo para uma terra boa e vasta, a terra do leite e do mel.

Sem dúvida, um gesto simbólico, repleto de nuanças, e com o objetivo também de mostrar a fragilidade da vida humana nesta Terra, onde a alma divina é carregada por um invólucro perecível - o corpo humano.

Quantas vezes não temos que exercitar uma visão para além deste invólucro, para poder enxergar mais longe e perceber que, por incrível que pareça, fomos feitos à imagem e semelhança de Deus. É difícil, talvez, neste nosso conturbado dia-a-dia, imaginar uma coisa desta, eu sei. Mas, quando o conseguirmos, muitos problemas de nossas vidas estarão solucionados.

Voltando à nossa frase inicial, “Amanhã eu faço, eu faço amanhã”, podemos relacioná-la ao maravilhoso fenômeno da sarça ardente, da lição dada a Moisés por Deus, de que tudo tem a solução que necessitamos, basta apenas tentar ver as coisas com outros olhos. Tchau e até o próxima terça.
*É jornalista, colunista, publicista da FalaBrasil e trabalhou 20 anos para a Radio Internacional da Holanda, país onde mora. Escreve todas as terças-feiras para o Dom Total.

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